domingo, 17 de fevereiro de 2013

Juros no Brasil: Uma imoralidade legalizada

juros
A coluna Pensamentos & Ideia é assinada pelo Defensor Público Dr. Júlio César Matias Lobo.

Desde a queda do muro de Berlim em outubro de 1989, a Alemanha capitalista uniu-se a Alemanha socialista, passando a constituir uma única Nação, embora a Alemanha situada no oeste europeu ainda se apresentasse mais industrializada e avançada, já que prega uma economia de mercado, a livre iniciativa e a concorrência, em comparação a Alemanha situada no leste europeu, na qual reinava o comunismo e o controle da economia pelo estado, por meio de uma economia planificada, sem possibilidade de qualquer livre iniciativa econômica e concorrência. Atualmente, porém, não persiste mais essa distinção econômica: existe uma só economia de mercado, uma só Alemanha, embora, frise-se, ainda existem resquícios da economia planificada, especialmente no leste europeu, como já destacado.

Outro ponto a ser destacado na Europa mais industrializada, especialmente nos países do oeste europeu, como é o caso da Alemanha, França, Itália e Reino Unido, é que os juros praticados no mercado financeiro ficam em patamares razoáveis e toleráveis, especialmente em razão da estabilidade inflacionária, política, econômica e social desses países e do elevado grau de confiança no mercado econômicos dessas potencias, o que não ocorre, in totum, no Brasil, notadamente a existência de juros comedidos e razoáveis.
A economia de mercado possibilita o desenvolvimento da livre iniciativa e da concorrência, fatores essenciais para o crescimento social e econômico de um país, já que instiga e incentiva a disputa pela prestação do melhor produto ou serviço, a contratação do melhor profissional, a constante profissionalização e aperfeiçoamento de mão de obra especializada, favorecendo, assim, o surgimento de novas demandas e procuras.
No Brasil, vigora a economia de mercado, e não a economia planificada. Contudo, a ordem econômica financeira brasileira, como bem determina o artigo 170, da Carta Magna de 1988, deve ser fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Existem, pois, limites ao exercício da atividade economia, por meio da previsão de normas protetoras dos interesses da parte mais fraca, seja em razão da hipossuficiência econômica, seja em razão da hipossuficiência jurídica.
Por essa razão, o Estado brasileiro estabeleceu normas de ordem públicas com conteúdo mínimo, cujo núcleo deve estar a salvo de qualquer intromissão ou violação, seja a que título for. De fato, o Estado brasileiro instituiu algumas normas protetivas de vital importância para a tutela dos direitos dos cidadãos, especialmente por meio do Código de Defesa do Consumidor, constituindo-se, na verdade, em autêntico microssistema, com regras materiais e processuais diferenciadas e específicas, já que procura tutelar direitos que se revelam sensíveis diante do poderio econômico de gigantes do mercado financeiro, especialmente as instituições financeiras, cada vez maiores e com lucros escancaradamente elevados.
Apesar da previsão desses microssistemas (normas protetoras específicas), o laboratório da vida tem mostrado que tais normas são insuficientes para tutelar, satisfatoriamente, os direitos dos consumidores brasileiros, especialmente os direitos daqueles que precisam firmar empréstimos financeiros, que estão sendo massacrados pelas instituições financeiras, com práticas abusivas que, infelizmente, têm recebido a chancela do poder judiciário, especialmente do Supremo Tribunal Federal (órgão encarregado de velar pela Constituição Federal, norma de maior hierarquia do sistema jurídico e na qual se encontram previstos os anseios, valores e costume de nossa sociedade) como se passa a demonstrar., e o faço começando pelos juros.
Juros, numa definição simplória, podem ser definidos como frutos em razão da utilização de dinheiro alheio. É dizer, juros são rendimentos produzidos em razão da utilização de capital de terceiros.
Os juros podem ser convencionais e legais. Convencionam quando decorrem de livre acordo entre as partes. Legais, quando decorrem de previsão legal. Os juros podem ser, ainda,moratórios, quando decorrem de inadimplemento parcial do devedor, e remuneratórios oucompensatórios, quando decorrem da utilização permitida de dinheiro alheio.
O novo Código Civil, também chamado pelo saudoso Miguel Reale de Constituição do Homem Comum, estabelece no seu artigo 406, que mesmo não estando previstos pelas partes, serão devidos de acordo com a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Pública. É dizer, o cidadão comum deve pagar os juros no percentual estabelecido para pagamento de impostos devidos à Fazenda Pública.
A discussão reside, porém, em saber qual é a taxa de juros para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Pública: (a) se a prevista no art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, de 1% ao mês (12% ao ano), cujo entendimento de encontra, inclusive, de acordo com o artigo 192, § 3º, da Constituição Federal. Esse é o entendimento da I Jornada de Direito Civil, materializado no Enunciado de número 20; (b) a segunda corrente, por sua, sustenta que se deve utilizar a taxa Selic como índice de apuração dos juros legais, o que não tem sido aceito pela doutrina dominante, sobretudo pelo fato de que a taxa Selic não permite o prévio conhecimento dos juros, já que é anualmente fixada pelo Bando Central, além de ser incompatível sempre que calcular somente juros ou somente correção monetária e com o artigo 591 do Código Civil, o qual permite apenas a capitalização anual dos juros, e não a capitalização mensal.
Ocorre, porém, caro leitor, que essa discussão só tem sentido nas transações comerciais realizadas entre particulares, é dizer, não se aplica às operações realizadas pelas instituições financeiras ou operadoras de cartões de crédito. Isso mesmo, para as transações financeiras realizadas pelas instituições financeiras não se aplica o limite de 12% (doze por cento) ao ano ou a taxa Selic. Como assim? Explique-me melhor.
Veja-se o seguinte exemplo: Caso João empreste dinheiro a José, o valor dos juros não poderá ser superior a 12% (doze por cento ao ano), ou seja, não pode ser superior a 1% (um por cento) ao mês. No máximo, pode ser aplicada a taxa Selic. Contudo, caso José pegue emprestado dinheiro a alguma instituição financeira, esta poderá cobrar juros superiores a 1% (um por cento) ao mês. Na verdade, os juros cobrados pelas instituições financeiras são bem superiores a 1% (um por cento) ao mês, como é de conhecimento público e notório.
Essa possibilidade só foi possível em razão da revogação do parágrafo 3º do artigo 192 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional de nº. 40[2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, pois, no entendimento equivocado do Supremo Tribunal Federal, a citada norma tinha sua aplicabilidade condicionada à edição de lei complementar. É dizer, a limitação de juros reais a 12% ao ano dependia de lei complementar para ser aplicada, de modo que, enquanto não viesse a citada lei, o limite de juros seria o razoavelmente cobrado pelo mercado. Com essa manobra, o órgão máximo da estrutura do poder judiciário estava liberando as instituições financeiras para cobrarem juros sem qualquer limite, desde que esteja de acordo com média cobrado pelo mercado financeiro. Como o mercado financeiro é influenciado, sobretudo, pelas principais instituições financeira, fácil é concluir que o STF entregou a elas um cheque em branco.
Não obstante essa manobra prejudicial e que representa uma violação gritante à Constituição Federal, com beneficiários certos e determinados: as instituições financeiras, o STF ainda publicou a Súmula 696, pela qual as instituições bancárias não estão sujeitas à Lei de Usura, e a Súmula 283, a qual prevê que as empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não sofrem as limitações da Lei de Usuras, embora esta lei esteja em vigor e se destine a proteger os vulneráveis.
Numa só palavra, o STF entendeu que as instituições financeiras e as empresas administradoras de cartões de crédito estão livres para cobrar juros, desde que o façam de acordo com as regras do mercado. Prevalecem, pois, a regras mercadológicas em detrimento do Código Civil, da lei e do senso de justiça e moralidade.
A nosso sentir, essa interpretação contraria frontalmente os ditames da justiça social e da dignidade da pessoa humana, pois autorizar a cobrança de juros abusivos é o mesmo que legalizar o massacre financeiro de famílias que dependem em muito de empréstimos financeiros no mercado financeiro. Numa só palavra, esse entendimento legaliza a lesão, permite o abuso de direito e o enriquecimento sem causa.
Não obstante a tudo isso, as atrocidades não param por aí. Além de permitir a cobrança de juros abusivos, o STF também permitiu a cobrança de juros sobre juros, ou seja, permitiu o anatocismo mensal de juros, apesar de o artigo 591 do Código Civil permitir tão somente a capitalização anual de juros. Contudo, a capitalização mensal de juros só é permitida de houver expressa previsão no contrato, o que não é difícil de acontecer, pois todos os contratos de empréstimos financeiros são confeccionados unilateralmente pelo fornecedor de produtos e serviços, sem que o consumidor tenha a possibilidade modificar qualquer cláusula. São, pois, típicos contratos de adesão, nos termos do artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor.
Assim, além de o limite da taxa de juros ser o fixado pelas instituições financeiras, ainda se permite a cobrança mensal de juros sobre juros (o anatocismo). Isso mesmo, é permitido o anatocismo mensal, desde que expressamente pactuado no contrato, como já destacado.
Nessa mesma entoada, autorizou-se, também, a cobrança da comissão de permanência cumulada com juros remuneratórios, desde que o montante dos encargos não ultrapasse a taxa global dos juros.
Outro ponto que tem gerado acirrada discussão jurisprudencial é a possibilidade ou não da cobrança da taxa de abertura de crédito pelas instituições financeiras. Nesse ponto, o consumidor tem se mostrado, por enquanto, vitorioso, pois a jurisprudência dos Tribunais de Justiça e do Superior Tribunal de Justiça, embora não se encontre consolidada, aponta no sentido de que tais gastos devem ser custeados pelo fornecer de produtos e serviços, e não pelo consumidor, já que sua cobrança constitui cláusula abusiva.
Nesse mesmo sentido, tem a jurisprudência entendido, ainda, ser ilegal a cobrança de valores referentes a serviços prestados por terceiros e a cobrança em razão da expedição de boleto bancário, pois ditos custos não podem ser repassados ao consumidor. Também não poderá ser cobrada multa contratual superior a 2% (dois por cento) ao mês.
Em suma, constata-se que os Tribunais Superiores não têm permitida a discussão judicial do montante da taxa de juros, a capitalização mensal de juros e da comissão de permanência fixados nos contratos de empréstimos. Tem permitido, porém, a discussão acerca da cobrança da taxa de abertura de crédito, das taxas relativas à prestação de serviços de terceiros, da cobrança do boleto bancário e da multa contratual superior a 2% (dois por cento ao mês).
Veja-se, pois, o que pode e o que não pode ser discutido judicialmente nos contratos de empréstimos consignados e nos contratos de alienação fiduciária:
CLÁUSULA A SER QUESTIONADA
ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL
Multa contratual
Não é possível a discussão judicial, desde que a multa contratual não seja superior a dois por cento ao mês.
Taxa de juros remuneratórios
Não é possível a discussão judicial, desde que esteja de acordo com a média do mercado, cuja consulta pode ser feita no site do Banco Central do Brasil.
Capitalização mensal de juros
Não é possível a discussão judicial, desde que haja previsão específica no contrato.
Comissão de permanência
Não é possível a discussão judicial, desde que o montante dos encargos não ultrapasse a taxa global dos juros.
Cobrança da taxa de abertura de crédito
É possível a discussão judicial.
Taxas relativas à prestação de serviços de terceiros e registro do contrato
É possível a discussão judicial.
Cobrança da expedição de boleto bancário
É possível a discussão judicial.
Apesar de já se encontrar pacificado na jurisprudência o entendimento de que não se admite a revisão judicial do montante da taxa de juros fixados, da capitalização mensal de juros e da comissão de permanência fixados, é comum a confecção de planilhas financeiras pelos Procon e Decon demonstrando que o valor da parcela do financiamento ou do empréstimo financeiro se mostra excessiva e ilegal, sem demonstrar onde se encontra efetivamente a ilegalidade ou a abusividade.
Na verdade, tais planilhas financeiras são feitas ao arrepio do entendimento jurisprudencial dominante e não refletem o entendimento consolidando dos Tribunais, servindo, tão somente, para suscitar no espírito do consumidor uma pretensão que não será totalmente atendida pelo Poder Judiciário, pois, como já dito, algumas cláusulas são consideradas abusivas e outras não, e os citados cálculos não se atentam para tanto. Daí a importância de uma orientação completa ao assistido, informando-lhe, após a leitura e análise do contrato a ser questionado, quais as cláusulas que valem a pena questionar judicialmente.
Dr. Júlio César Matias Lobo
Defensor Público
Prof. Esp. de Direito na Faculdade Católica Rainha do Sertão
Colunista do portal Revista Central
As opiniões aqui expressas não necessariamente coincidem com as da RC.

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