A discussão sobre a legalização da maconha no Brasil já chegou ao Congresso Nacional. Uma sugestão de iniciativa popular apresentada por meio do Portal e-Cidadania do Senado Federal, com 20 mil assinaturas, propõe que o uso da maconha seja regulamentado como o das bebidas alcoólicas e cigarro.
A iniciativa é a sugestão nº 8, a qual a presidenta da Comissão de Direitos Humanos do Senado, senadora Ana Rita (PT-ES), designou à relatoria o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), que aceitou a demanda e levou o debate para o seu perfil no Facebook. Em nota, Buarque declarou que se sentiu “desafiado” e por isso resolveu levar o debate adiante realizando assembleias para debater a questão da liberação da maconha.
“Embora seja um tema no qual sou leigo, não vou fugir da indicação, temendo a polêmica em torno dela. Vou aprofundar o assunto através de audiências públicas e debates, inclusive aqui. Só me recusaria se o tema fosse irrelevante, mas ele é relevante. Quero analisar em primeiro lugar o risco de que a legalização possa ampliar o consumo; depois, se há realmente vantagem científica e medicinal; ainda mais, o impacto da legalização na redução de violência; também quero saber se o sentimento nacional deseja está legalização ou ainda não estaria preparado”, declarou o parlamentar em seu perfil no Facebook.
André Kiepper, analista de Gestão em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz e mestrando em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), também pesquisa modelos de regulação da maconha nos EUA e é o autor da iniciativa que levou o debate sobre o uso da cannabis ao Senado. Ele afirma ter gostado muito da indicação do senador pedetista como relator e não vê “nome melhor” para fazer tal debate. “Ao enfatizar que o tema é muito relevante, o senador Cristovam Buarque transmitiu esperança. Há um verdadeiro contentamento nas redes sociais. Por isso, acredito que não haveria melhor pessoa para ser o primeiro relator desta proposta. Não temos certeza de nada, mas sabemos, ao menos, que o debate começou nas mãos de um educador, que sofreu perseguição política durante o regime militar, que exilou-se na França, e que, agora, não deixará que o assunto seja boicotado, como sempre foi”, comenta.
O pesquisador também conta como surgiu a ideia da iniciativa por meio do portal e-Cidadania. “No final do ano passado, comecei a acessar o site do Senado do Uruguai para acompanhar a tramitação do Projeto de Lei de regulação da maconha daquele país e, ao mesmo tempo, acessar o site do Senado brasileiro, para acompanhar a tramitação do PLC 37/2013, que é o Projeto de Lei da Câmara com tendência totalmente oposta ao que o resto do mundo está legislando sobre drogas. Ficou claro que não haveria oposição política ao PLC 37/2013, por causa das eleições de outubro de 2014. Para mim, inadmissível que senadores se abstenham de reformar a Lei de Drogas do Brasil sob o argumento do efeito negativo que o tema poderia causar nas urnas. Então, nestas buscas pelo site do Senado brasileiro, conheci o E-cidadania, uma ferramenta criada para fomentar a participação cidadã”, conta.
Reações parlamentares
A partir de agora é fato que o Brasil e o Congresso Nacional terão de entrar neste debate que corre o mundo. E, como ressaltou o senador Cristovam Buarque, a discussão se torna ainda mais interessante por ter vindo a partir de uma demanda popular e não de um projeto de lei pensado exclusivamente na Casa. Ou alguém acredita que, em um parlamento pautado principalmente pela agenda dos ruralistas e mercadores da fé, seria possível apresentar um projeto de lei que prevê o uso recreativo e medicinal da maconha? Como lembrou Kiepper, tramita na Câmara o PLC 37/2013, de autoria do deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS), que caminha na contramão do que vem sendo feito em vários lugares do mundo em termos de políticas de drogas, tornando ainda mais rígida a repressão aos usuários e pequenos comerciantes de substâncias ilegais.
Já há também parlamentares que se manifestaram de forma contrária ao debate proposto pela iniciativa, como é o caso do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), que declarou que “há temas mais relevantes em discussão” e disse ser contrário à proposta. Já Paulo Davim (PV-RN) afirmou que é uma “incoerência” liberar a maconha. “Se nós estamos numa campanha árdua para diminuir o número de tabagistas no Brasil e no mundo, seria uma incoerência concordarmos com a liberação dessa substância. O uso da maconha tem, sim, severas repercussões ao longo do tempo nos seus usuários”, declarou o parlamentar do Partido Verde, agremiação que até pouco tempo defendia a descriminalização da cannabis. Mas, no bloco dos contrários ainda há espaço para o senador Álvaro Dias (PSDB-PR) que recorreu ao argumento de que a maconha é “porta de entrada” para outras drogas. “Acho que não devemos flexibilizar a legislação em relação ao uso da maconha. Eu sou frontalmente contrário. É estimular o vício e dar origem a vícios ainda mais perversos”, disse o tucano.
Mas há parlamentares que também estão dispostos à reflexão sobre o tema. “Quais são as vantagens de termos a possibilidade de uma regulamentação à luz, inclusive, da legislação que recentemente foi iniciada em inúmeros países, dentre os quais o Uruguai? É uma tendência que merece ser seriamente estudada”, ponderou Eduardo Suplicy (PT-SP). O senador Randolfe Rodrigues (Psol-AP) disse que é necessário fazer o debate inspirado em experiências que deram certo ao redor do mundo. “Eu acho que o Brasil tem que debater à luz das experiências existentes no mundo. Há experiências nos Estados Unidos, no Uruguai e na Europa. A questão deve ser tratada à luz das experiências, principalmente no que diz respeito à segurança e à saúde pública”, defendeu Rodrigues.
Do Colorado ao Uruguai
Em 2013, os eleitores de Colorado e Washington decidiram votar pela liberação da maconha, para uso tanto recreativo quanto medicinal. Do lado latino, os olhos do mundo se voltaram para o Uruguai que durante todo o ano de 2013 realizou assembleias populares para construir um consenso em torno da regulamentação da maconha e de sua comercialização, controlada pelo Estado.
Sempre que o assunto é legalização das drogas, muitos dos opositores argumentam que com isso as cidades, estados e países viveriam um aumento no número de usuários com consequentes surtos de violência. Isto não aconteceu nem no Uruguai, tampouco no Colorado e em Washington. Trata-se de um evidente abalo no conceito de “guerra às drogas” propagado pelos EUA.
“A guerra às drogas é injusta e equivocada. Seu pressuposto é uma ingerência indevida do Estado na esfera das liberdades individuais e, além disso, produz muito mais problemas sociais do que aquilo que, a princípio, busca coibir, que são os possíveis danos decorrentes do consumo de drogas. Os EUA foram os principais impulsionadores do proibicionismo mundial no século XX, mas nunca estiveram sozinhos. Nesse século (XXI), mesmo que nos fóruns internacionais mantenham a postura conservadora, os norte-americanos estão implodindo o paradigma proibicionista e o governo federal vem sinalizando mudanças. Tiveram papel decisivo em criar a ‘guerra às drogas’ e agora terão papel importante no seu fim”, analisa Maurício Fiore, antropólogo e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Para Kiepper, a questão de estados norte-americanos estarem revendo as políticas em tornos das substâncias ilegais é uma mudança paradigmática. “Esta mudança representa uma estratégia geopolítica de enfrentamento ao narcotráfico. Os altos custos financeiros e humanos não justificam mais a guerra às drogas. Os EUA estão fazendo a retirada gradual de suas tropas, reconhecendo que a regulação da maconha é a melhor medida para conter o avanço da violência e do crime organizado”, avalia o pesquisador.
A dúvida que fica é se o Congresso Nacional, provocado externamente, vai avançar neste debate de fato ou continuará seguindo na linha conservadora que tem marcado sua atuação. “Acho que a iniciativa vai impulsionar sim a discussão no Congresso, que até agora não só se mostrava inerte à qualquer mudança da política de drogas como ainda buscou piorá-la com um projeto como o do deputado Osmar Terra, que foi aprovado na Câmara e está agora no Senado. No entanto, não sou muito otimista a curto prazo para avanços no Legislativo. O máximo que vai acontecer esse ano é a realização dessas audiências públicas, mas isso pode ser um avanço”, acredita Fiore.
Kiepper espera que a proposta possa ser votada ainda este ano, desde que seja depois das eleições. De acordo com ele, os parlamentares podem aprender muito com as audiências ao tomar conhecimento dos modelos existentes ao redor do mundo. “Os senadores terão a oportunidade de conhecer os modelos de regulação da maconha do Uruguai, de Israel, dos EUA, Espanha e de outros países europeus. Modelos que, na verdade, restringem o consumo, não o alimentam. E também conhecer mais sobre a planta, suas propriedades terapêuticas e medicinais”, afirma, fazendo uma ressalva. “Precisarão abandonar suas convicções baseadas em inverdade ou preconceito. O Senado uruguaio promoveu, entre setembro e novembro de 2013, 12 audiências públicas para avaliar o Projeto de Lei. Isto é, uma audiência pública por semana, durante três meses, de forma ininterrupta, para, com propriedade, votá-lo. Eu pediria aos senadores da Comissão de Direitos Humanos do Senado brasileiro que dessem o mesmo tratamento ao tema. Compreendo que o Congresso do Uruguai teve o apoio e o aval de um senhor [José Mujica] que, agora, é candidato ao prêmio Nobel da Paz, ao passo que a presidenta do Brasil ainda confunde política com religião. Mas o mundo está avançando. Não podemos ficar para trás”, pontua André Kiepper.
Cristovam
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