O Sul do Ceará foi palco de inúmeros eventos relacionados à política, não apenas local, mas com tentáculos que se estendiam às demais partes do país.
O marco inicial dessa participação do Cariri, em assuntos nacionais, foi a revolução pernambucana de 1817, quando a família Alencar encabeçou a instauração do movimento republicano, trazendo-o de Pernambuco até o Ceará.
Posteriormente, com o movimento de independência do Brasil, mesmo depois de D. Pedro I ter anunciado a separação, algumas tropas portuguesas (na Bahia, Piauí e Maranhão) mantiveram-se relutantes, não aceitando ou não crendo em tal deliberação. Assim, partira do Ceará uma leva de caririenses em direção ao Norte, afim de por cobro às resistências estabelecidas no Piauí e Maranhão, havendo nesta empreitada também alguns membros da família Alencar.[1]
Em 1824, o movimento republicano convalesce, sob a alcunha de “Confederação do Equador”, novamente migrando de Pernambuco até o Ceará, porém, alastrando-se por toda a província, na qual foi efetivamente implantado um governo republicano, e mais uma vez a família Alencar participou intensamente desta “revolução”.
Algum tempo depois da abdicação de D. Pedro I, uma “revolta” rompe o curto período de paz vivido no Cariri. Igualmente aos acontecimentos anteriores, a causa deste levante, deflagrado no período de 1831 a 1832, deveu-se à política, pois o Coronel Joaquim Pinto Madeira comungava com as aspirações dos restauradores, desejosos da volta de D. Pedro I ao governo brasileiro. Novamente a família Alencar esteve envolvida, porém antagonizando a “Revolta do Pinto”.
Contudo, essa derradeira sublevação foi desbancada, e o seu líder, inimigo mordaz dos Alencares, preso. Tomando o poder da província, como Chefe do Poder Executivo, José Martiniano de Alencar (pai do escritor), envia Pinto Madeira ao Cariri, onde foi julgado e fuzilado sumariamente, em contrariedade às leis da época.
José Martiniano, pouco depois foi eleito Deputado Provincial, e, posteriormente, passou a Senador do Império. Nesta função, demonstrou sua habilidade política, quando deu à luz ao chamado “Golpe da Maioridade”[2], permitindo que D. Pedro II tomasse antecipadamente às rédeas da Administração Imperial.
Esse remoto período apenas ensejou outros feitos políticos em que os membros do sobredito clã estiveram envolvidos. Contudo, nem todos desfrutaram da riqueza e das benesses do poder, apesar de também terem sido politizados, obtendo sucesso em suas sensatas conjecturas.
Assim, um desses indivíduos, filho da prosápia dos Alencar, Antonio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré[3], quando posto à prova, também demonstrou seu acurado senso no que concerne aos assuntos estadistas.
Patativa não cantou apenas a sua realidade, de matuto pobre e agricultor, ou temas prosaicos, como seu cotidiano envolto da natureza, também tratando de motes de engajamento social, político e científico.
A acridade de alguns de seus versos chegou a incomodar aos militares, como a publicação de “O Caboclo Roceiro”, fato que motivou os censores da ditadura militar a intimarem o poeta.[4]
A mensagem contida na obra de Patativa é exógena, partindo de temas regionais alcança uma linguagem universal, pois aloca suas ideias em um patamar acessível à inteligibilidade homogênea. De dentro para fora, partindo da observação de seu habitat, ou melhor, de sua tribo, extrai e exporta sentimentos comuns, entendíveis.
Apesar de ter frequentado a escola por apenas seis meses[5], patativa foi um autodidata, fazendo-se íntimo da literatura nacional, e, consequentemente, um erudito da cultura popular.
Em razão disso, nem sempre as obras do bardo do Assaré são feitas em linguagem informal, mais precisamente, na forma falada pelo camponês nordestino, pois, por várias vezes, também criou versos metrificados, à moda dos poetas neoclássicos.
Com todo esse cabedal, construído a partir de leituras e de um favorável alicerce empírico, condensou em suas criações o fiel retrato de um povo, circunscrito não apenas por uma região, mas pelas angústias e anseios de todo e qualquer homem.
Assim, em certa ocasião, quando se dirigiu até a prefeitura de sua cidade natal no fito de ter com o prefeito uma consulta, não o encontrando, nas três vezes que intentara, quedou-se insatisfeito. Perante a imoderada ausência daquele edil, Patativa usou de sua habilidade literária, de improviso, para satirizar a desagradável circunstância:
Nesta vida atroz e dura
Tudo pode acontecer,
Muito breve há de se ver
Prefeito sem prefeitura;
Vejo que alguém me censura
E não fica satisfeito,
Porém, eu ando sem jeito,
Sem esperança e sem fé,
Por ver no meu Assaré
Prefeitura sem prefeito.
Por não ter literatura,
Nunca pude discernir
Se poderá existir
Prefeito sem prefeitura.
Porém, mesmo sem leitura,
Sem nenhum curso ter feito,
Eu conheço do direito
E sem lição de ninguém
Descobri onde é que tem
Prefeitura sem prefeito.
Ainda que alguém me diga
Que viu um mudo falando
E um elefante dançando
No lombo de uma formiga,
Não me causará intriga,
Escutarei com respeito,
Não mentiu este sujeito.
Muito mais barbaridade
É haver numa cidade
Prefeitura sem prefeito.
Não vou teimar com quem diz
Que viu ferro dar azeite,
Um avestruz dando leite
E pedra criar raiz,
Ema apanhar de perdiz
E um rio fora do leito,
Um aleijão sem defeito
E um morto declarar guerra,
Porque vejo em minha terra
Prefeitura sem prefeito.
Por esse escarnecedor protesto Patativa foi preso por um guarda municipal, durando o cárcere apenas quinze minutos.[6] Porém, esse parco tempo no calabouço não foi o suficiente para calar sua voz, que, no dito intervalo prisional, declamou mais um improviso zombeteiro:
Patativa descontente,
Nesta gaiola cativa,
Embora bem diferente,
Eu sou também Patativa.
Linda avezinha pequena,
Temos o mesmo desgosto,
Sofremos a mesma pena,
Embora, em sentido oposto.
Meu sofrer e teu penar
Clamam a Divina Lei.
Tu, presa para cantar
E eu preso porque cantei.
O poeta-cantador apelou para as armas que detinha, na ocasião, lançando mãos da redondilha maior[7], sua métrica preferida, aplicando a essa erudita composição um conteúdo popular, sertanejo, crítico e político, seguindo a vereda que palmilhara seu clã, sempre imbuído da administração estatal e temas correlatos.
Bibliografia:
Andrade, Cláudio Henrique Sales, Patativa do Assaré: As Razões da Emoção, Fortaleza – São Paulo, Editora UFC, 2004.
Assaré, Patativa do, Digo e não peço segredo, Acesso Produções Culturais Ltda., p.. 19.
Figueiredo Filho, J. de, História do Cariri, Volume 2, Crato – Ceará, Faculdade de Filosofia do Crato, 1964.
Moreira, José Roberto de Alencar, Vida e Bravura: Origens e Genealogia da Família Alencar, Brasília, Editor José Roberto de Alencar, 2005.
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