segunda-feira, 30 de abril de 2018

Um ano após morte de Belchior, artistas cearenses discutem a influência do músico para as artes


Belchior entendia que seu caminho era na contramão. Como a placa torta indicava em "Pequeno Mapa do Tempo" - a canção que, sem vergonha nenhuma, manifestou um dos principais temas que rodeavam seu cerne artístico. O medo. Não que o temor fosse o fator determinante de sua capacidade criativa, mas Belchior sabia como explorar as fragilidades humanas naquele momento de ruptura que foi a década de 1970.

O sobralense morreu aos 70 anos, em 29 de abril de 2017. A partida foi em casa, na cidade de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, onde vivia com a esposa. Do lado de cá, a comoção foi grande. Mais de 5,6 mil pessoas passaram pelo velório no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, na noite do dia 1º de maio. Ainda no equipamento, uma multidão cantava as letras do compositor.

Em artigo publicado no mesmo dia, no Estadão, Caetano Veloso escreveu que as composições de Antônio Carlos Belchior estavam "dentro de um timbre criativo sempre rico e instigante" e estabelece "Como Nossos Pais" como uma das melhores interpretações de Elis Regina.

"Não é por acaso que Belchior é lembrado e louvado por gerações sucessivas. Suas canções não são das que morrem. Ele prefigurou os anos 80 em termos globais e se instalou na memória profunda da história da criação de música popular no Brasil", avaliou o baiano. "As pessoas que enchiam os teatros a cada reaparição do bardo cearense entendem o sentido dessa história".

Para o cearense Cristiano Pinho, parceiro de palco de Belchior em algumas oportunidades, a importância da música do rapaz latino-americano se dá pelo pensamento universal que guia as composições, como a existência humana. "É inegável o legado que ele deixou para todos nós. As melodias são sofisticadas, os pensamentos, de acordo com a vivência dele de jovem, do sonhador que ele sempre foi", afirma.

"A discografia da vida dele é mais do que a cronologia dos anos. É a cronologia da evolução do indivíduo, ele é muito fiel a isso". Em entrevista por telefone, Pinho se refere ao amigo, com evidente carinho, tratando-o por Bel. E fala de uma "saudade cristalizada".

"Convivi com ele o período da vida em que ele estava por aqui. Período da vida mesmo de músico, ele me chamou pra tocar. A gente tinha um convívio pessoal muito respeitoso, uma relação de profunda admiração", lembra.

Antes do exílio
A atriz e cantora Bárbara Sena viu dois shows de Belchior, em Fortaleza, antes do auto-exílio. O primeiro, em 2004, na Reitoria da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ela viu o próprio pai, Tarcísio Sardinha, tocar piano e violão no palco com Bel. Dois anos depois, Belchior cantou na Praça do Ferreira. Era 1º de maio e o evento havia sido organizado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT). E Bárbara estava lá.

"Na minha infância, a gente sempre escutou Belchior. Ele canta as nossas dores e a luta do povo cearense, mas as canções são universais. As pessoas se identificam em qualquer lugar. É atemporal, mas ao mesmo tempo é muito nossa", continua a cantora. É um material que precisa ser revisto como se escutar Belchior nunca fosse a mesma coisa. Você percebe outros desenhos, imagens do que ele canta. A música dele não é cristalizada, atravessa o tempo".

Em 2017, Bárbara Sena gravou o curta-metragem "Capitais", de Arthur Gadelha e Kamilla Medeiros. O filme é inspirado em "Alucinação", do álbum homônimo lançado em 1976. "Ele fala do cotidiano de forma muito preciosa. Ele faz você ver o estudante, o pobre, a mulher sozinha na rua. Dá voz a personagens que são invisibilizados, minorias".

A solidão das pessoas dessas capitais
O cineasta Arthur Gadelha, que dirigiu e escreveu "Capitais" ao lado de Kamilla Medeiros, conta que a personagem de Bárbara Sena surgiu a partir do verso "uma mulher sozinha", presente na canção. "Eu e a Kamilla escolhemos a mesma personagem e nos apegamos a ela. Mas o sentimento que envolve o filme vem de tudo que a música trata", explica.

"Nós chegamos a conclusão de que ele cantou muito sobre o medo da vida e sempre encontrando coragem nos desafios. Cantou sobre querer mudar e ser jovem. Essas ideias se encontraram com a preocupação em relação a cidade. Sentimos uma angústia que nós também temos, porque também somos da cidade", explica.

Arthur conta que a relação com a música do sobralense ficou mais intensa com a pesquisa para o filme. "Nunca tinha percebido como a música dele é tão forte, sobre a vontade de preocupar com as coisas reais. Ele sempre alucinou com coisas reais", conta.

Finalizado na última semana, "Capitais" conta a história de uma mulher que mora em um condomínio onde os vizinhos não se conhecem. "Chegamos a conclusão de que é preciso olhar para o outro. E isso acabou se tornando uma forma de transpor as músicas porque o Belchior encontra o problema e apresenta solução. Nunca é apenas sofrimento. É como em "Pequeno Mapa do Tempo", que ele fala muito sobre medo e, ainda assim, você sente a esperança". (Do O Povo)

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